quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Howard Zehr fala sobre Justiça Restaurativa no Brasil



A Faculdade de Direito da USP recebeu, ontem, o professor Howard Zehr, referência mundial quando o assunto é justiça restaurativa. Em uma apresentação bem articulada e esclarecedora, ele comoveu a platéia. Hoje, o encontro é em Brasília. Depois, Zehr segue para Florianópolis e Porto Alegre. Confira, aqui, o conteúdo da palestra e as idéias desse especialista.


Durante pouco mais de uma hora, a platéia do auditório da Faculdade de Direito da USP assistiu atenta à palestra do professor norte-americano Howard Zehr - um dos pioneiros a falar sobre justiça restaurativa no mundo. Em seguida, muitos dos presentes pediram autógrafo e quiseram tirar fotos com ele. Talvez na tentativa de eternizar o clima de esperança e humanidade que Zehr transmite a quem escuta suas palavras.O professor contou que o conceito de justiça restaurativa é relativamente novo, começou a ser pensado há pouco mais de 30 anos, no Canadá, quando dois jovens bêbados destruíram 22 propriedades, entre casas e carros, em uma única rua.Na ocasião, o juiz responsável pelo caso questionou o que aconteceria se aqueles dois garotos fossem parar na cadeia: ninguém teria suas propriedades recuperadas, a sensação de insegurança permaneceria presente naquela rua e, provavelmente, os jovens não se dariam conta do que fizeram. Uma das sugestões, na época, foi de que os dois se encontrassem com as pessoas prejudicadas, assumissem a culpa diante delas e pedissem desculpas. Howard Zehr diz que, naquela época, não se sabia muito bem como fazer isso. De todo modo, o modelo tradicional de justiça começava a ser repensado.Hoje, o novo modelo é conhecido em quase todo o mundo. Na Nova Zelândia, um dos primeiros países a experimentar essa alternativa, o tribunal é considerado a última opção para quem comete um crime e, não, a primeira. Antes de tudo, é realizada uma conferência restaurativa - mesmo em casos de homicídio. O resultado, de acordo com Zehr, foi uma diminuição da carga do judiciário e da população carcerária.Para o professor, a justiça restaurativa é mais do que a implementação de um novo modelo justiça, trata-se de uma filosofia, uma cultura. Howard Zehr a compara a uma troca de lentes em uma câmera fotográfica: cada uma é capaz de captar a mesma imagem sob ângulos e perspectivas diferentes e produzir fotos completamente diferentes.NOVAS PERGUNTASUm dos pontos-chave da justiça restaurativa é criar oportunidades para que tanto a vítima quanto o infrator possam se recuperar. Na justiça retributiva - à qual estamos acostumados -, entende-se que o infrator cometeu um crime contra o Estado e as primeiras perguntas são: quem cometeu o crime? A que lei ele infringiu? Qual é a punição merecida?A justiça restaurativa começa propondo novas perguntas:- Quem sofreu o dano? - Quais são as necessidades dessa pessoa, nesse momento?- Quem vai supri-las e de que forma?É que o foco desse novo modelo está, acima de tudo, na vítima e em suas necessidades.A VÍTIMANormalmente, a vítima fica excluída do processo criminal e sequer é informada sobre as decisões do tribunal de justiça. E quando é convocada como testemunha, recebe um tratamento que leva muito pouco em conta o sofrimento em decorrência do crime, o que especialistas chamam de estresse pós-traumático.Com a justiça restaurativa, a vítima tem a oportunidade de se encontrar com o infrator e fazer todas as perguntas que quiser - evidentemente, sob mediação de uma pessoa treinada para isso e que conversa separadamente com as partes antes desse encontro. Várias das dúvidas da vítima, somente o ofensor saberá responder. Segundo Zehr, esse momento é muito importante para que ela consiga recuperar sua saúde mental."O que costuma acontecer é que a vítima imagina o infrator bem maior do que ele realmente é", diz o professor. Ela sonha com o que aconteceu, sente raiva, medo, desejo de vingança e tem necessidades de justiça.
"Quando a vítima é muito agressiva e sente muita necessidade de vingança, pode saber que sua necessidade de justiça não foi atendida" conta Zehr.Basicamente, a intenção da justiça restaurativa é proporcionar à vítima:SegurançaEla precisa saber que algo está sendo feito para que nem ela e nem outras pessoas passem por aquele trauma novamente.Respostas para suas perguntasNormalmente, as vítimas querem saber: Como você sabia que eu não estaria em casa naquele momento? E se eu estivesse em casa, o que teria acontecido? Por que você fez isso? Por que comigo?Quando o caso envolve a morte de um ente querido, elas também perguntam quais foram suas últimas palavras ou o que ele estava fazendo quando tudo aconteceu. Dizer o que estão sentindoA vítima sente uma necessidade de contar suas histórias e de fazer com que o infrator saiba o que estão passando por causa do crime. Essa é uma forma encontrada por elas de restaurar sua própria história e conseguir se recuperar.Recuperar a autoridade perdidaQuando se tem uma propriedade violada, a sensação é de que se perdeu as rédeas da própria vida. A vítima precisa sentir que ela recuperou o poder sobre suas coisas.Restituição por parte do infratorSeja por meio de indenização, da prestação de trabalhos comunitários e de um pedido autêntico de desculpas, é fundamental que o infrator se responsabilize pelo que fez e deixe claro para a vítima que a culpa não foi dela - já que muitas acreditam que são culpadas pelo que lhes aconteceu. Em alguns casos de atitudes racistas e violência doméstica, por exemplo, o contrato entre a vítima e o infrator consiste em uma mudança de comportamento por parte do segundo.As experiências restaurativas têm mostrado que quanto mais a vítima é envolvida e considerada no processo, mais ela sente que foi tratada com justiça. De acordo com Howard Zehr, a troca de presentes no Natal e o desejo de vingança são sentimentos que vêm da mesma necessidade: a de equilíbrio entre os dois lados, de um acerto de contas.Costuma-se envolver não só a pessoa atingida, como também sua família e a comunidade. Mesmo no caso de jovens de rua infratores, a presença de uma figura que lhe seja importante, pode contribuir muito para o sucesso do caso.No Canadá, há a experiência de círculos de paz, inspirada nos costumes indígenas locais. Essa é uma forma de toda a comunidade participar das decisões relativas ao crime de maneira organizada e democrática: cada um pode se manifestar quando estiver com o cachimbo na mão, que depois é passado a outra pessoa.O INFRATOROutro princípio forte da justiça restaurativa é a responsabilização do infrator e não sua punição. "Onde há dano, há obrigações. É preciso pensar maneiras de se consertar o que fez", defende o professor. A lógica do sistema tradicional de justiça é a negação: o Estado precisa provar que o réu é culpado. Ou seja, não importa o quão culpado ele seja, é preciso encontrar ferramentas para negar o que fez. E mesmo dentro da prisão, continua-se alegando inocência. Nesse caso, não existe responsabilização.Dentro da justiça restaurativa, a idéia é a de que o infrator tenha consciência do que fez, a quem feriu e quais foram as conseqüências dos seus atos. Há quem diga que a proposta é muito leve para os ofensores, mas Zehr garante que não. "É muito difícil encarar a vítima. Acompanhei membros de uma gangue nessa situação. Eles tremiam tanto que precisaram de um tempo para se recompor. Para eles, ir para a prisão era muito mais fácil".
SOB OUTRO ÂNGULOPor mais que o desejo seja de punir quem cometeu o crime a qualquer custo, é necessário se colocar no lugar desse ser humano - que é o infrator -, não para justificar seus atos, mas para atuar na raiz da questão.Howard Zehr afirma que a maioria dos ofensores já foram vítimas ou se sentem vítimas de alguma forma e vêem no crime uma resposta para isso. Quando o infrator é simplesmente punido, a idéia de vitimização é reforçada, com a imposição de um estigma de criminoso e, depois, de ex-presidiário. Estudos psiquiátricos demonstram que toda violência é um esforço para se fazer justiça ou para se desfazer uma injustiça. O professor defende que é preciso tirar a idéia de que quem cometeu um crime deve receber o que merece. Ele conta que o número de assassinatos nos EUA costuma crescer quando há muitas execuções de pena de morte. "A mensagem passada é de que está tudo certo em castigar quem fez mal a você".Com o tempo, os valores de respeito e vergonha ficam invertidos no "código das ruas". "Se o infrator experimenta que a justiça não é legítima, eles negam a vergonha que sentem e a transformam em respeito", explica Zehr. Para quem cometeu o crime, a condenação por uma entidade em que não acredita pode ser até motivo de orgulho perante outros infratores. Para o professor, a vergonha é uma emoção perigosa, que deve ser administrada e jamais imposta sobre os réus.Estudos sobre inteligência social afirmam que o cérebro humano, desde o nascimento, é programado para nos conectar com outras pessoas. Se essa conexão não é feita com os pais ou pessoas queridas, se há sofrimento de abuso ou negligência, as conexões neurais ficam distorcidas. O infrator, que provavelmente já foi desrespeitado inúmeras vezes na vida, é mais uma vez desrespeitado pelo sistema judiciário. O que a justiça restaurativa sugere é que haja respeito entre todos, porque respeito gera respeito. "Nada funciona melhor para reprogramar o cérebro do que a empatia. Quando o infrator entende a vítima - e vice-versa - estabelece-se uma relação entre seres humanos", diz Zehr. Isso não significa que a vítima tenha a obrigação de perdoar o infrator, ela pode perdoar ou não, mas, de todo modo, terá suas necessidades, inclusive de justiça, atendidas.E FUNCIONA?Estudos foram realizados sobre os efeitos da justiça restaurativa e mostram que, quando há políticas de mediação entre vítima e infrator, o numero de reincidência cai consideravelmente, sendo 1/3 menor do que o habitual entre os jovens.Entre os reincidentes, o grau do crime cometido posteriormente é menor. E quanto mais sério o crime, menor o grau de reincidência.O estresse das vítimas também diminuiu, com menor desejo de vingança e resultando em menos gastos com saúde pública. E vítimas e infratores apresentaram maior grau de satisfação."Mesmo que não haja efeitos sobre a diminuição do crime, só a ajuda à vítima já torna o sistema mais eficaz que o convencional", afirma o professor. Segundo ele, o novo sistema não é perfeito e há muita coisa que ainda não sabem.De todo modo, um dos maiores desafios da justiça restaurativa é pensar de maneira original. Constantemente chamado de utópico, Howard Zehr finalizou a palestra com um desejo: "Um dia, não será preciso chamá-la de justiça restaurativa, mas apenas de justiça".
Por Thays Prado - Edição: Mônica NunesPlaneta Sustentável - 08/04/2008

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