Alegado suicídio no EPM levanta dúvidas sobre o sistema prisional
Há uma lei em Macau que tem vindo a ser sistematicamente ignorada por quem tem a obrigação de a aplicar. Trata-se do diploma que regula o regime de intervenção jurisdicional na execução das penas de prisão. A legislação data de 1999 e introduziu muitas hipóteses que o sistema não acolhe.
Há uma lei em Macau que tem vindo a ser sistematicamente ignorada por quem tem a obrigação de a aplicar. Trata-se do diploma que regula o regime de intervenção jurisdicional na execução das penas de prisão. A legislação data de 1999 e introduziu muitas hipóteses que o sistema não acolhe.
Isabel CastroLei tinha 45 anos e passou várias vezes pelo Estabelecimento Prisional de Macau (EPM) nos últimos anos. Foi condenada uma, duas, três, cinco vezes. Sempre pelo mesmo crime: desobediência à proibição de entrada em casinos. No sábado passado, a reclusa terá posto fim à vida. Segundo a prisão, foi encontrada morta por uma companheira de cela. Os familiares duvidam do acto de desespero, não se conformam com o sucedido e já entregaram uma petição ao Chefe do Executivo. Contam que a reclusa sofria de problemas psicológicos há mais de uma dezena de anos. Querem que o sistema se penitencie pela morte da familiar.O caso de Lei tem dado que falar. Pereira Coutinho levou o tema à Assembleia Legislativa e pediu uma investigação independente, além do relatório a apresentar pelo próprio EPM. Ng Kuok Cheong juntou-se à pretensão e sublinhou a importância do caso.“Um suicídio numa prisão é algo muito, muito grave”, comenta um advogado ao PONTO FINAL. O especialista em Direito Penal prefere não ser identificado, solicitação que não foge à regra quando o assunto em cima da mesa se prende com tribunais e com o que se passa atrás das grades. “O mundo das prisões é extremamente complicado, é necessária muita sensibilidade para gerir um estabelecimento prisional”, acrescenta o causídico, que há vários anos defende arguidos em Macau.Sobre o caso de Lei desconhecem-se os pormenores processuais, mas o que foi tornado público chega para algumas constatações: a começar, o facto de a reclusa ter sido condenada múltiplas vezes pelo mesmo tipo de crime.“Do ponto de vista legal, é admissível que tal aconteça”, explica o jurista, alertando porém que, dada a natureza do ilícito, teria sido necessária uma prova pericial médica. “Isto devia ter sido ponderado desde logo ao nível do julgador, mas aparentemente não foi.” Fonte próxima do processo assegurou ao nosso jornal que, aquando do último julgamento de Lei, não foram tidas em consideração as condições psíquicas da reclusa, que tinha para a próxima semana uma nova consulta marcada na especialidade de psiquiatria.O especialista ouvido pelo PONTO FINAL sublinha “a extrema complexidade e gravidade da dependência do jogo, que é mais grave do que a dependência do álcool e da droga”. Além disso, “a dependência do jogo tem uma gravidade extrema ao nível dos impulsos que levam à entrada num casino”.Posto isto, “se o indivíduo não tem liberdade para decidir, tal tem efeitos ao nível do efeito volitivo do crime”. A desobediência é um crime de dolo, pelo que “não basta saber se um tipo legal foi preenchido, é preciso analisar o tipo subjectivo”. Por outras palavras, teria sido importante perceber se a arguida, entretanto condenada, tinha a possibilidade de agir de maneira diferente da que agiu, entrando num casino, não cumprindo a sanção que lhe tinha sido imposta e cometendo, deste modo, o crime de desobediência.Prisão para quê?Além de causar o debate em torno da necessidade de perceber se arguidos com patologias como a de Lei, jogadora compulsiva, devem ser submetidos a uma pena privativa de liberdade, o caso da reclusa de 45 anos gera outras questões. Por ter sido condenada não uma, mas cinco vezes pelo mesmo crime, a história de Lei demonstra, desde logo, que a pena de prisão, neste caso concreto, não teve quaisquer efeitos ressocializadores, apenas a sua componente retributiva – o pagamento do mal pelo crime. “As pessoas não devem ir para a prisão apenas para estarem presas. Deve haver um efeito ressocializador”, vinca o advogado. É um dos princípios mais elementares do sistema penal de Macau.Mas Lei, bem ou mal, foi condenada por um crime que, até prova em contrário, praticou como consequência de uma patologia. “Havendo uma sentença de prisão efectiva, metade do mal está feito. A direcção da prisão não pode agir de outra maneira que não seja a execução da pena.”Porém, compete ao estabelecimento prisional avaliar a situação que tem em mãos e há dúvidas de que essa apreciação tenha sido feita da melhor forma. Sabe-se que, durante os apenas cinco dias de reclusão antes de pôr alegadamente fim à vida, Lei foi várias vezes à consulta de psiquiatria, pelo que a prisão aventou de imediato a hipótese do suicídio estar “associado ao seu estado mental”.Reiterando que um suicídio numa prisão se reveste de “muita gravidade”, o especialista em Direito Penal não hesita em afirmar que “alguma coisa está subjacentemente mal” a todo este episódio.O que não passa do papelO que está longe de estar bem é a forma como tem sido aplicado o decreto-lei nº86/99/M, uma legislação aprovada pouco tempo antes da transferência de administração que veio modernizar os procedimentos de execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade.“Para além da liberdade condicional, nenhum dos outros institutos previstos na lei funciona, por manifestas resistências e receios de implementação. É letra morta”, nota o especialista. O diploma prevê medidas que, noutros países e territórios, são vulgarmente aplicadas tendo como objectivo primeiro a ressocialização dos reclusos, mas também a descompressão dos próprios estabelecimentos prisionais. Falamos de institutos como o regime aberto na execução da pena, as medidas de flexibilização da execução, as licenças de saída prolongada, as licenças de saída curta e a introdução de pulseiras electrónicas.Também a amnistia e o perdão, assim como o instituto do indulto, são coisas invulgares em Macau. A última lei da amnistia data de 1994. Quanto ao indulto, em quase dez anos de RAEM foi concedido apenas um – a uma reclusa que sofria de uma doença terminal e que acabou por morrer um mês depois de lhe ter sido devolvida a liberdade.“Nos últimos anos, existe a ideia de que a amnistia e o indulto enfraquecem o sistema de Direito”, aponta o penalista, que prefere chamar a atenção para o efeito de “descompressão” destes mecanismos. “A amnistia cíclica de pequenos delitos e o perdão parcial de penas longas realizam esse objectivo.”Acontece que, dizem os advogados com experiência durante os anos 1990 em Macau, o que se passou no final da década, entre 1997 e 1999, “sobrevalorizou” a necessidade de segurança. Foram os anos da chamada “guerra das seitas”.Os defensores de arguidos em detenção preventiva ou efectiva são os primeiros a sentirem esta preocupação “excessiva” do mundo prisional local. “Um advogado é um agente do sistema de segurança, mas não pode entrar tão-pouco com um telemóvel e a sua pasta é revistada”, explica.Mas o pior é mesmo “o excessivo rigor” do que pode ou não um recluso deter na sua cela. É uma preocupação que, notam os conhecedores do meio, é tão grande que tem uma consequência óbvia: a criação de condições para a prática de corrupção. Há notícias, de quando em vez, que confirmam este diagnóstico. “A corrupção não deve ser só reprimida, deve ser prevenida.”Ontem, o Tribunal de Segunda Instância pronunciou-se justamente sobre dois casos de corrupção passiva que envolvem guardas prisionais.A vida real está longeO Estabelecimento Prisional de Macau tem mais umas centenas de reclusos do que aqueles que o projecto inicial previa. Há anos que se fala na necessidade de uma nova prisão em Macau mas, por ironia do destino, as Obras Públicas de Macau foram dando prioridade a outros projectos, pelo que o edifício de Ka-Hó foi sendo adiado, segundo explicou no início do corrente ano o próprio director do EPM.A prisão em Coloane foi construída à imagem de estruturas do género em Hong Kong, em que se privilegia a área destinada às oficinas – uma das principais formas de passar o tempo atrás das grades e aquela que, a par dos programas educacionais, é considerada a grande aposta do EPM no que toca à reinserção social.Na década de 1990, o sistema prisional de Macau era mais inovador do que o actual: era concedida a um grupo de reclusos a oportunidade de trabalhar no exterior, em obras de construção. Esta abordagem não só permitia aos presos retomarem, pouco a pouco, o contacto com a liberdade, como tinha a vantagem acrescida de criar relações que poderiam ser favoráveis ao recluso para a obtenção de trabalho aquando do fim da pena.Macau chegou a ter também um sistema muito semelhante ao que é adoptado, cada vez mais, pelos estabelecimentos prisionais portugueses: acordos com empresas que facultavam aos reclusos a possibilidade de estarem a trabalhar dentro da prisão.A grande diferença em relação à ocupação do tempo livre nas oficinas do EPM é que se permitia o contacto com o mundo empresarial real: não só se abriam portas para um futuro emprego, como os reclusos recebiam remunerações melhores neste tipo de trabalho, o que era também importante para as famílias que deixam cá fora.Hoje em dia, a RAEM não tem nenhum esquema deste género que permita, a dada altura do cumprimento da pena, ter um contacto com a vida real. Não há trabalho fora dos muros da prisão de Coloane, não há saídas de curta nem de longa duração. Há alguns meses, um ex-recluso contou ao PONTO FINAL que, quase um ano depois de ter sido colocado em liberdade, continuava com problemas de adaptação. E isto porque, na prisão, “não havia nada para fazer”, não aprendeu ofício que lhe seja útil cá fora.Além disso, segundo explicou, o programa de reinserção social da Direcção dos Serviços dos Assuntos de Justiça aplica-se apenas a quem está em liberdade condicional. Os que ficam na prisão o tempo total determinado pelo juiz são colocados em liberdade e, depois, e estão por sua conta e risco. Que acaba, frequentes vezes, por ser um grande risco – tão grande que pode acabar na prática de um novo ilícito. E no regresso ao EPM.Espaço para respirarDentro do Estabelecimento Prisional de Macau falta espaço. Lei partilhava cela com mais três mulheres mas há casos de reclusos que coabitam, anos a fio, com muitos mais companheiros num espaço exíguo. Os relatos de quem cumpriu pena dão conta de que há apenas uma ida semanal ao recreio – o que vai claramente contra as directrizes das Nações Unidas sobre o tratamento de reclusos, pois aconselha a que, aqueles que não tenham trabalho ao ar livre diário, possam sair da cela todos os dias para apanhar sol.Espaço para os reclusos poderem respirar o ar da rua é coisa que não abunda na prisão de Coloane. Também existem carências no que toca ao desporto. Originalmente, o EPM tinha um campo de futebol, mas o espaço foi ocupado com a construção de um edifício para os serviços administrativos da prisão.Em Coloane, os homens estão detidos consoante a gravidade do crime que praticaram. No caso das mulheres, a história é outra: por não haver espaço, as reclusas estão todas na mesma ala. Em teoria, tal significa que condenadas por homicídio podem estar a conviver com mulheres que praticaram delitos menores, como o de Lei, que desrespeitou a proibição de entrada num casino.Ameaças e enigmasA conversa com advogados experientes em Direito Penal em Macau revela pormenores mais assustadores. Dizem-nos, por exemplo, que os processos de transferência de cela são complicados e burocráticos.Há histórias de reclusos que pediram aos seus representantes legais para serem colocados em celas com companheiros diferentes, por se sentirem ameaçados. Há histórias em que o desfecho não foi o melhor, por falta de celeridade no processo de transferência da “acomodação”.“Claro que há prisões na Ásia que são piores”, comenta o jurista ouvido pelo PONTO FINAL, instado a pronunciar-se sobre o que se ouve, raras vezes, do que acontece atrás dos muros de Coloane. Mas o mesmo advogado chama a atenção para as condições financeiras de que Macau dispõe – houvesse vontade e menos receio em relação às mudanças, e a RAEM poderia ter um sistema prisional exemplar.Falta a Macau pensar em medidas de “descompressão do sistema”, mas falta também perceber “a complexidade do mundo prisional e dos reclusos”. Falta algo que já existiu – um estabelecimento prisional para jovens até aos 21 anos, “25 no máximo” – que lhes permita cumprir pena num ambiente menos viciado do que o dos adultos pecadores de manhas várias.Por enquanto, falta também perceber o que se passou com Lei, para evitar outras histórias do género. A família não se conforma, quer que as companheiras de cela sejam inquiridas, quer ter acesso ao conteúdo do sistema de videovigilância do EPM. Só para ter a certeza e saber o que, efectivamente, se passou na madrugada de sábado, dia em que Lei apareceu enforcada com umas calças na casa de banho da prisão.
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