sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Quando a ilha é uma prisão


Nasceram nos Açores e foram criados nas américas. Depois de presos, deportaram-nos.
A pergunta é: "Pátria é onde somos criados ou onde nascemos?". Uma vida inteira guardada em meio guarda-fatos fechado a cadeado. E uma cabeça confusa, às voltas com a mesma pergunta. Adelino Tavares, 48 anos, chora inconformado. Chegou há seis semanas aos Açores, expulso da América. Em cima da cama, sentado, percorre a fotografia do filho, de três anos, entre a irmã, 18, – de cabelo loiro, longo e biquini azul – e a mãe – com um vestido azul florido. A segunda fotografia é da casa, com piscina. E há mais, dele com os filhos que ficaram na Flórida, EUA. Chamam a S. Miguel ‘The Rock’, a prisão de Alcatraz. Para a maioria dos repatriados é o cumprimento de uma segunda pena de prisão. Perpétua.

Adelino foi detido num bairro de tráfico de droga. Tinha consigo meio grama de cocaína. "Eu consumia [crack], mas não achava que tivesse um problema de droga. Trabalhava por conta própria na reparação de casas. Chegava a ganhar dez mil dólares [7300 euros] por mês", conta, em inglês. Foi julgado e condenado a seis meses de cadeia. O problema da deportação é que há emigrantes que nunca se naturalizaram. E por ser português e não cidadão americano, apesar de ter ido para a Flórida com dois anos, Adelino foi deportado. Viu os filhos pela última vez, há seis meses, através de uma janela da prisão, já eles estavam no parque de estacionamento. "Não consigo pensar como será viver sem eles por muito mais tempo", confessa, prostrado na sua cama do centro de acolhimento.

PRESO PELA CRENÇA

Na sala da sua casa, Nuno C. senta-se na poltrona. Ao lado, a moldura verde – com a inscrição ‘Greatest dad’ (‘o melhor pai’) – tem uma fotografia da filha de 13 anos abraçada aos irmãos, de 11 e 10 anos. Naquela divisão, separada da cozinha por uma barra de ferro forjado, colado ao enorme televisor LCD, lê-se ‘Believe’ (‘acredita’); numa das paredes, ‘Hope’ (‘esperança’) e ‘Faith’ (‘fé’). Nuno tem cabelo curto, a marca na orelha esquerda de quem usou um brinco. Veste uma camisa Ralph Lauren e usa o perfume CK One. Tem 38 anos. Há 18 meses foi deportado para S. Miguel. Cumpriu pena de prisão por violação de menor. A ama dos filhos, de 15 anos. Foi o pior que deixou em Massachusetts, EUA; o melhor, foi a família.

Nuno C. acende um cigarro – o primeiro de muitos que se seguiriam – e começa por contar – num português perfeito – que defendeu a bandeira americana na Guerra do Golfo, em 1991, onde disparou "forçosamente" contra um miúdo, que teria entre 11 e 15 anos. Carregava uma bomba, diz. "Foi um trauma". Casou com uma colega de faculdade, da primeira de duas licenciaturas – Finanças, outra em Gestão de Empresas. Trabalhava num banco financeiro e ganhava 92 mil dólares por ano.

Durante a gravidez (complicada) do terceiro filho, o casal contratou uma baby-sitter. Tal como eles, a adolescente frequentava a Igreja Universal do Reino de Deus com a família. E foi com ela que teve relações sexuais. E por ela diz ter-se apaixonado. O tribunal condenou-o à cadeia por quatro a cinco anos.

Enquanto conta a história, toca o telemóvel. "Hello baby" – é a mulher que lhe liga, dos EUA. Falam de um filho hospitalizado. Perto de dois minutos depois, despede-se. "I love you" – e sopra-lhe um beijo. Desde os 11 anos que Nuno C. estava na América. Regressou depois de lutar com a mulher, a sogra, o pai, a família, contra a deportação. Na sala da casa que uns familiares lhe alugaram, em Ponta Delgada, por 150 euros, bebe um chá quente como conforto para o coração. Para vestir o seu drama de esperança e fé. Para receber mais um telefonema da mulher – que já o veio visitar – ou dos filhos. É esta a sua solidão.

Fora de casa, Nuno ocupa-se do trabalho na Universidade dos Açores e da licenciatura que está lá a tirar. É visto como um caso de sucesso pela sua capacidade de integração. "Raramente ando com outros deportados porque muitos chegam cá tão revoltados que voltam a fazer cá o que fizeram lá. Crimes, gangs – ainda há um mês e tal um foi esfaqueado. Droga, álcool".

VIOLAÇÃO AGRAVADA

É dia de mudanças para o carpinteiro Luís S. Encontrou casa por 175 euros – vai poder esticar o salário mínimo. Uma construção de madeira praticamente despida de tinta, com sala e uma (envelhecida) kitchenette, um quarto e uma casa de banho. Indiferente à humildade do tecto está o ‘Tiger’, um gato rafeiro de dois meses.

"Eu não sei falar português, fico desesperado" – confessa, antes de recuar ao passado entre expressões americanas e um português atalhado. Era camionista, ia de Boston a Nova Iorque, ou a New Jersey – e se tivesse sorte, lá ia a S. Francisco. Mas a parte oculta da sua vida era feita de "droga [cocaína], álcool e mulheres". Tem hoje 51 anos e cumpriu 20 de prisão, pelo crime de violação agravada. Foi deportado há um ano.

Conta que durante a reclusão se apaixonou pela psiquiatra e casou com ela, em 2002. Só um polícia, outro recluso e o conservador assistiram ao casamento. "Só que, mais tarde, como não tínhamos consumado o casamento – não houve lua-de-mel –, anulámos". E não remexe mais no passado. "Cheguei aqui perto da passagem do ano e comecei logo a fumar e a beber umas cervejas. Às vezes estou aqui sozinho a pensar na minha mãe e no meu pai, nos meus filhos. Quero ter uma vida feliz, ser americano".

Desde 1987, chegaram aos Açores 1100 repatriados. "De identidade eles são americanos ou canadianos. Legalmente são portugueses. Mas não têm ligação ao País", diz Suzete Frias, presidente da associação Arrisca, que ajuda à integração dos deportados. "Se pegarmos nos direitos fundamentais do homem, quase todos são quebrados [com a deportação]. E não estou a branquear o facto de terem cometido um acto ilícito".

Paulo Fontes, da associação Novo Dia, aponta "a falta de sentido da vida" dos repatriados e a "a falta de resposta da sociedade". Tiveram um percurso escolar difícil e enfrentam a falta de trabalho. Além do estigma. A associação Novo Dia já enfrentou dois abaixo-assinados para mudar as instalações de localização "porque atraímos mais toxicodependentes, mais problemas".

REBELDES DA AMÉRICA

Num jardim mesmo ao lado das Portas da Cidade, Ponta Delgada, concentra-se uma vintena de repatriados. São cinco da tarde. Esperam por uma sopa quente que a associação Novo Dia lhes traz. Ali vêem-se duas mulheres consumidas pelo álcool. O resto são homens. Conversam entre eles em inglês, como se estivessem numa qualquer rua americana.

Jorge Machado, 56 anos, tem um semblante fechado. É o único que acede a falar. "Fui deportado por um caso simples", começa por dizer, enquanto os outros comem a sopa e repartem um pacote de vinho em garrafas de plástico. "Um gajo assaltou-me a casa, quando eu estava deitado para no dia seguinte ir para a pesca – eu era pescador. Acordei com ele a bater na minha mulher. Fui à mesa de cabeceira, peguei na pistola e dei-lhe um tiro. Não o matei". Jorge apanhou cinco anos de prisão. Pior: foi deportado. Saiu de New Bedford, onde viveu 41 anos, para S. Miguel, de onde partiu aos onze.

Jorge, desempregado, só tem uma companheira – também ela repatriada – e os amigos do jardim. Vê consumir droga. E bebe uns copos com eles. "Saíram daqui quando eram apenas crianças, o que sabem eles desta terra? Nada. O desabafo desta gente é o vinho. Muitos injectam comprimidos [Subotex e Suboxone, ambos de substituição opiácea]. A tristeza maior que pode haver é isto".

"PARTE DELES VOLTA A COMETER DELITOS"

Desde 1987, terão entrado nos Açores 1100 repatriados. Alguns deles cumpriram longas penas de prisão por crimes pesados, principalmente nos Estados Unidos da América e no Canadá. "Claro que é uma preocupação", esclarece o subcomissário da PSP Nuno Costa. "Muitos destes indivíduos vamos nós próprios buscá-los ao avião e recolhemos o máximo de informação sobre eles. Para nos precavermos".

Não existem estudos sobre os índices de criminalidade associada aos repatriados. Certo é que parte deles volta a cometer delitos. "Existem alguns que chegam à ilha [São Miguel] e voltam a cair nas teias criminais. Mas também há deportados que são perfeitamente reintegrados", prossegue Nuno Costa.

"Não podemos falar em criminalidade violenta. A maioria são crimes contra o património e contra pessoas, como roubos. E também tráfico de droga. Não há gangs, há grupos que vivem juntos e que têm de ser vigiados".

FONTE

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Mensagem de boas-vindas

"...Quando um voluntário é essencialmente um visitador prisional, saiba ele que o seu papel, por muito pouco que a um olhar desprevenido possa parecer, é susceptível de produzir um efeito apaziguador de grande alcance..."

"... When one is essentially a volunteer prison visitor, he knows that his role, however little that may seem a look unprepared, is likely to produce a far-reaching effect pacificatory ..."

Dr. José de Sousa Mendes
Presidente da FIAR