Esta é a história de "Pedro". Mal lhe colocaram uma pulseira electrónica, pediu autorização para ir ao Registo Civil casar. As tentações de quem não tem um guarda à porta para o impedir de sair. As memórias de uma noite de Natal atrás das grades. As palavras de quem nunca deu tanto valor à liberdade.
00h00m
INÊS SCHRECK, ADELINO MEIRELES
Pediu que lhe chamássemos "Pedro", o nome do guardião das chaves do céu. E vêm-lhe à memória as chaves, as fechaduras, as grades.
O barulho que faziam ao abrir e ao fechar no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária do Porto. Três meses de clausura foram suficientes para Pedro, 37 anos, ficar com "fobia a grades" e averso a portas fechadas. Foi tempo suficiente para saber que, na prisão, "toda a gente chora na véspera de Natal". Foi uma estadia curta, mas não deixou saudades.
Está preso em casa com pulseira electrónica desde Fevereiro, à espera de ser acusado e julgado por tráfico de estupefacientes, "um passo mal dado" de qual se arrepende todos os dias. Sabe que poderá ter de enfrentar novamente as grades, as fechaduras e as chaves, mas por agora quer aproveitar a oportunidade que lhe foi concedida de estar em casa, perto dos seus.
"Não há nada que pague podermos acordar, abrir a janela e estarmos com a nossa família", diz, deitando um olhar à mulher, com quem casou há um mês, já de pulseira no pé.
"Já tínhamos marcado a data, mas depois tivemos de adiar [quando esteve detido] e quando tive a feliz notícia de que ia sair, nem hesitámos", conta, sorrindo. Pediu ao tribunal autorização para se ausentar do domicílio e ir à Conservatória do Registo Civil. A festa foi em casa, junto de quem mais gosta.
"Desde que me vi privado de liberdade, decidi fazer uma peneiragem na minha vida". Deixou os amigos, as más companhias, para romper com o mundo do crime. "Recuperei o contacto com os meus pais, de quem me andava a afastar e que me têm apoiado muito neste processo", contrabalança Pedro, como que pesando as vantagens nas pontas dos dedos.
Está sentado na sala, num cadeirão, vestido como gosta, rodeado de conforto e da decoração que aprecia. Atrás de si, tem uma varanda onde pode ir fumar um cigarro e respirar a liberdade. "São as únicas grades que suporto", ri-se. Apesar de não haver comparação possível com a prisão, "estar preso em casa também tem as suas dificuldades".
"Não é tão fácil como se pensa, há muitas tensões, as famílias não estão habituadas a relacionar-se 24 horas por dia", comenta Susana Pinto, coordenadora da equipa do Porto da Direcção-Geral de Reinserção Social.
Para responder a estes e outros problemas, foi criada uma linha verde para os arguidos e familiares contactarem com os técnicos de reinserção social. Podem usá-la para tratar de vários assuntos, mas, à noite, caem na linha sobretudo desabafos.
"A tentação é muita", diz Pedro. A porta está ali ao lado, todos os dias, mas não há ninguém a guardá-la. "Tem de haver um auto-controlo muito grande, temos de interiorizar que a prisão continua a existir", confessa.
Por muito que a televisão e a Internet ajudem a passar o tempo, "há momentos em que se sente a falta de sair de casa, a falta de liberdade".
Nessas alturas, é hora de puxar pela imaginação e "começar a desarrumar para voltar a arrumar". As tarefas domésticas são, aliás, um bom escape psicológico. Todas as manhãs, Pedro acorda e toma o pequeno-almoço com a mulher e o enteado. Fuma um cigarro, cumpre mais uma passagem pela cama, até acordar definitivamente para começar a preparar o almoço para a família. À tarde, quando a mulher e o filho voltam a sair, são as horas mais complicadas. Arruma a cozinha, vê televisão, lê os jornais na Internet, tenta inventar com que se entreter. "Queria fazer um curso de formação à distância, mas não encontro nada", queixa-se.
Ao fim do dia, regressa a família, começam as brincadeiras, chegam as visitas, os pais, os três filhos de outro casamento. À noite, mais um pouco de televisão na companhia da mulher. E mais um dia se passou. "Não custa nada, comparado com a prisão".
Mas, de madrugada, quando deita a cabeça na almofada, voltam as memórias: a cela, as grades, as chaves, aquela noite em que perdeu o controlo e desatou a esmurrar as paredes, o choro dos outros presos "porque na prisão até os muito maus choram", sobretudo, no Natal. "A véspera de Natal numa prisão, não dá para descrever", confessa Pedro. E, com as memórias, volta também o medo de regressar para trás das grades.
jn.sapo.pt
00h00m
INÊS SCHRECK, ADELINO MEIRELES
Pediu que lhe chamássemos "Pedro", o nome do guardião das chaves do céu. E vêm-lhe à memória as chaves, as fechaduras, as grades.
O barulho que faziam ao abrir e ao fechar no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária do Porto. Três meses de clausura foram suficientes para Pedro, 37 anos, ficar com "fobia a grades" e averso a portas fechadas. Foi tempo suficiente para saber que, na prisão, "toda a gente chora na véspera de Natal". Foi uma estadia curta, mas não deixou saudades.
Está preso em casa com pulseira electrónica desde Fevereiro, à espera de ser acusado e julgado por tráfico de estupefacientes, "um passo mal dado" de qual se arrepende todos os dias. Sabe que poderá ter de enfrentar novamente as grades, as fechaduras e as chaves, mas por agora quer aproveitar a oportunidade que lhe foi concedida de estar em casa, perto dos seus.
"Não há nada que pague podermos acordar, abrir a janela e estarmos com a nossa família", diz, deitando um olhar à mulher, com quem casou há um mês, já de pulseira no pé.
"Já tínhamos marcado a data, mas depois tivemos de adiar [quando esteve detido] e quando tive a feliz notícia de que ia sair, nem hesitámos", conta, sorrindo. Pediu ao tribunal autorização para se ausentar do domicílio e ir à Conservatória do Registo Civil. A festa foi em casa, junto de quem mais gosta.
"Desde que me vi privado de liberdade, decidi fazer uma peneiragem na minha vida". Deixou os amigos, as más companhias, para romper com o mundo do crime. "Recuperei o contacto com os meus pais, de quem me andava a afastar e que me têm apoiado muito neste processo", contrabalança Pedro, como que pesando as vantagens nas pontas dos dedos.
Está sentado na sala, num cadeirão, vestido como gosta, rodeado de conforto e da decoração que aprecia. Atrás de si, tem uma varanda onde pode ir fumar um cigarro e respirar a liberdade. "São as únicas grades que suporto", ri-se. Apesar de não haver comparação possível com a prisão, "estar preso em casa também tem as suas dificuldades".
"Não é tão fácil como se pensa, há muitas tensões, as famílias não estão habituadas a relacionar-se 24 horas por dia", comenta Susana Pinto, coordenadora da equipa do Porto da Direcção-Geral de Reinserção Social.
Para responder a estes e outros problemas, foi criada uma linha verde para os arguidos e familiares contactarem com os técnicos de reinserção social. Podem usá-la para tratar de vários assuntos, mas, à noite, caem na linha sobretudo desabafos.
"A tentação é muita", diz Pedro. A porta está ali ao lado, todos os dias, mas não há ninguém a guardá-la. "Tem de haver um auto-controlo muito grande, temos de interiorizar que a prisão continua a existir", confessa.
Por muito que a televisão e a Internet ajudem a passar o tempo, "há momentos em que se sente a falta de sair de casa, a falta de liberdade".
Nessas alturas, é hora de puxar pela imaginação e "começar a desarrumar para voltar a arrumar". As tarefas domésticas são, aliás, um bom escape psicológico. Todas as manhãs, Pedro acorda e toma o pequeno-almoço com a mulher e o enteado. Fuma um cigarro, cumpre mais uma passagem pela cama, até acordar definitivamente para começar a preparar o almoço para a família. À tarde, quando a mulher e o filho voltam a sair, são as horas mais complicadas. Arruma a cozinha, vê televisão, lê os jornais na Internet, tenta inventar com que se entreter. "Queria fazer um curso de formação à distância, mas não encontro nada", queixa-se.
Ao fim do dia, regressa a família, começam as brincadeiras, chegam as visitas, os pais, os três filhos de outro casamento. À noite, mais um pouco de televisão na companhia da mulher. E mais um dia se passou. "Não custa nada, comparado com a prisão".
Mas, de madrugada, quando deita a cabeça na almofada, voltam as memórias: a cela, as grades, as chaves, aquela noite em que perdeu o controlo e desatou a esmurrar as paredes, o choro dos outros presos "porque na prisão até os muito maus choram", sobretudo, no Natal. "A véspera de Natal numa prisão, não dá para descrever", confessa Pedro. E, com as memórias, volta também o medo de regressar para trás das grades.
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