domingo, 22 de novembro de 2009

Exmos. Senhores Gervásio Poças e Jerónimo Campos

Gervásio e Jerónimo têm, entre si, 70 anos de voluntariado prisional. Percorreram milhares de quilómetros e já ajudaram centenas de reclusos.
Gervásio Poças é voluntário há 44 anos. Já conheceu centenas e centenas de reclusos e fez milhares de quilómetros para os levar às famílias
Chaves para a reinserção social estão muitas vezes nas mãos dos voluntários, que conseguem arranjar emprego aos ex-reclusos
"Não sei por que é que querem falar comigo", diz, humildemente, Gervásio Poças do alto dos 80 anos. "Isto não tem interesse nenhum", insiste. Mas está enganado. Tem interesse e muito. Há 44 anos que todos os sábados vai à cadeia visitar reclusos. Fez milhares de quilómetros e conhece centenas de histórias.
Tudo começou quando Gil Michael Vasconcelos o convenceu a ir ajudá-lo a passar filmes na Cadeia Civil do Porto. Como Gil ia muitas vezes para fora, Gervásio passou a ir sozinho. "Foi assim, em Maio de 1965, que começou a minha vida na prisão", recorda com um sorriso.
Jerónimo Campos, 59 anos, visitou pela primeira vez uma prisão por causa do medo. Aos cinco anos, estava na brincadeira com o irmão mais novo quando um acidente lhe tirou a vida. Os amigos, na brincadeira, provocavam-no: "Vais para a prisão, vais para a prisão". E cresceu com aquele trauma.
Um dia, já adulto, um amigo levou-o ao anexo psiquiátrico de Santa Cruz do Bispo. Jerónimo passou mal e até foi ao psiquiatra, que lhe disse que não podia voltar. Mas a teimosia foi mais forte e começou a fazer visitas regulares. "Fui para vencer o medo e apaixonei-me", confessa. E já lá vão 26 anos.
"Saio sempre mais rico do que quando entrei. É como ler um livro. Lê-se uma página, começa a interessar e, na próxima visita, ficamos à espera da próxima novidade", explica Jerónimo. Ganhou a alcunha de "cadastrola" porque, pelas suas contas, entre visitas, telefonemas, relatórios e passeios, já tem 12 ou 13 anos de cadeia cumpridos.
Os dois referem com tristeza o abandono que muitos presos sentem e o sofrimento que isso lhes provoca. E aí reside a principal função dos voluntários. "Falar com eles, dar amor e afecto", explica Gervásio.
"Há reclusos que estão à espera de uma visita ou de uma carta durante anos e anos e nada. Nós estamos lá para os ajudar", garante Jerónimo. Escrevem cartas e fazem telefonemas para unir famílias. Por vezes até pagam as deslocações.
Gervásio já percorreu milhares de quilómetros para levar presos a casa. Recorda-se de um rapaz da Gafanha da Boa Hora - "um pedaço de homem, pescador de mar alto, que estava na clínica psiquiátrica". Conseguiu-lhe uma saída precária e num sábado levou-o a casa. "Estavam o pai e o irmão a esfolar um porco. Ele aproximou-se por trás e disse: "Bom dia, meu pai, dá-me a sua benção?" O pai nem uma, nem duas. O rapaz foi à cozinha onde a mãe dava ao fole para aquecer a água de lavar o porco e foi a mesma coisa. Nada. Saltou-me a tampa e fiz uma barulheira. Disse-lhes: 'Ó seu filho da mãe, o rapaz está preso há quatro anos, nunca o foram ver, ele vem ter consigo, pede-lhe a benção e você nem olha para ele? Eu sou de uma terra onde normalmente as mães têm pena dos filhos mais desgraçados, aqui é o contrário'. O que vale é que esta gente tem tanto de estúpida como de bondade e lá acabaram todos a chorar abraçados e eu ainda vim de lá com um saco de batatas".
Às vezes, há desilusões. Jerónimo conta que, ainda há pouco tempo, um recluso veio ter com ele e contou-lhe que o sogro e a sogra também estavam presos e ele tinha três filhos com 11 e oito anos e um de três meses. Perguntou se podia fazer algo pela mulher dele. Jerónimo telefonou-lhe e ela disse que a única coisa que queria era algo para matar a fome aos filhos. Foi ao supermercado e comprou um cabaz de alimentos. Quanto foi ter com a senhora, apareceu com um BMW topo de gama.
Mas isso não os desmotiva. Nem quando alguém que ajudaram lhes vira a cara. "Tive dificuldades, mas depois compreendi que a minha figura era uma recordação de um momento mau da sua vida. Percebo a atitude deles, mas nem sempre é assim. Há um rapaz na Suíça que me escreve e telefona várias vezes", confidencia Gervásio. Era um jovem que tinha tentado o suicídio porque os pais não queriam nada com ele por se ter metido na droga.
"Os pais fazem o melhor que podem pelos filhos, mas nem sempre tomam as medidas certas", desabafa Gervásio. Conseguiu o número da mãe e telefonou-lhe. "Se quer ver o seu filho com vida, apareça, disse-lhe. Lá vieram, consegui uma precária e a situação resolveu-se. Agora, está bem com a irmã".
"O voluntariado é assim, não é preciso um curso. O objectivo é conseguir que estes homens sejam reintegrados na sociedade", diz Gervásio. "Temos de semear amor", acrescenta Jerónimo. "Se semearmos amor, vamos colher amor, senão vamos ser engolidos pelo terror. Todos podemos cair na lama. A sociedade tem de dar amor para os receber de novo e ajudá-los. Nunca podemos pensar que não vale a pena porque ele vai cair outra vez", conclui. Dia 24 de Dezembro, Gervásio vai passar a sua 44ª ceia de Natal na prisão. Vai ser a última porque quer passar mais tempo com a mulher, que também tem 80 anos. O amigo Jerónimo também lá vai estar. Ambos vão procurar distribuir um pouco de amor aos carentes porque, explica o primeiro, "os reclusos não são monstros, são homens como nós e todos precisamos de carinho".

jn.sapo.pt

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Direcção

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Mensagem de boas-vindas

"...Quando um voluntário é essencialmente um visitador prisional, saiba ele que o seu papel, por muito pouco que a um olhar desprevenido possa parecer, é susceptível de produzir um efeito apaziguador de grande alcance..."

"... When one is essentially a volunteer prison visitor, he knows that his role, however little that may seem a look unprepared, is likely to produce a far-reaching effect pacificatory ..."

Dr. José de Sousa Mendes
Presidente da FIAR