sábado, 14 de novembro de 2009

Quando o fim-de-semana é passado na prisão

Têm emprego, família e uma vida normal durante a semana. Mas a maioria esconde no trabalho e no grupo de amigos que passa os fins-de- -semana na prisão. Em Portugal, são mais de 300 os condenados a penas de prisão por dias livres, um regime que permite substituir a prisão efectiva por dias de fim-de-semana. Na cadeia do Linhó são 20, estão numa ala à parte, entram à sexta-feira à noite ou ao sábado e saem ao domingo. Para voltar na semana seguinte. A maioria foi condenada por conduzir sem carta ou alcoolizados, e apanhados mais do que uma vez a praticar o mesmo crime. O objectivo é evitar destruir os laços familiares e laborais dos reclusos e poupá-los do pesado contexto prisional
O pequeno carro amarelo não chega a parar nem dois minutos. Cláudio pega no saco onde traz a roupa e meia dúzia de objectos pessoais, dá um beijo à mulher e sai. Com ar pensativo e passo vagaroso, percorre a pé os cem metros de alcatrão que separam a cancela da entrada principal do Estabelecimento Prisional do Linhó, enquanto Manuela, já atrasada para entrar ao serviço no Parque das Nações, faz inversão de marcha e arranca. Passam dez minutos das nove da manhã deste sábado de Outono com sol ainda de Verão e o tempo convida a um fim-de-semana agradável. Mas Cláudio não traz grande sorriso no rosto, pois sabe que as próximas 36 horas serão passadas num pavilhão fechado, com uma dezena de reclusos, sem nada para fazer e sem contacto com o exterior. Só domingo à noite voltará para junto da família. No próximo sábado, tudo se repetirá.
"Nem acredito que vou andar nisto até Maio...", desabafa, num misto de desânimo e revolta, aproximando-se do guarda que à porta da prisão regista a sua entrada. Tem sido esta a rotina dos últimos fins-de-semana, e assim se deverá manter nos próximos sete meses. Hoje, o Cláudio Júnior, de oito anos, ficou em casa com a avó, pois a mãe, que saiu cedo da Margem Sul para deixar o pai antes das nove no Linhó, segue agora directa para o trabalho. "Quero evitar trazê-lo aqui. Eu digo-lhe que venho trabalhar. Mas ele já lê, vê ali a palavra cadeia, e começa a perceber", afirma, apontando as letras cinzentas por cima da porta de ferro. "Se calhar, ainda sou eu que acho que o consigo enganar, e ele, que é um espertalhaço, já percebeu tudo", acrescenta, retribuindo o cumprimento à cara conhecida que lhe diz bom dia.
Cláudio foi condenado a 48 períodos de prisão por dias livres (PDL), um regime de substituição da pena de prisão até um ano e que se cumpre apenas aos fins-de-semana. A medida, cuja abrangência foi recentemente alargada na revisão do Código Penal, permite-lhe, assim, pagar pelo crime que cometeu, sem perder os vínculos laborais e familiares.
Chamar crime ao facto de ter sido apanhado a conduzir sem carta de condução parece-lhe um pouco excessivo. Ainda mais para quem, hoje com 34 anos, já contabiliza no cadastro oito anos e seis meses de pena efectiva, cumprida na mesma prisão onde agora vem passar os fins-de-semana. Isto porque, relata, aos 20 anos, "andava com más companhias, fumava umas cenas", e fez "uns furtos".
Mas é isso que dita o Código Penal e foi isso que o juiz considerou na hora de se pronunciar sobre o que ocorreu há meia dúzia de meses. "Tinha ido às compras com a minha mulher ao Pingo Doce. E no estacionamento, tive de puxar o carro atrás. Foi só isso. Mas um guarda viu-me. Como não tenho carta e já tinha sido apanhado antes, foi isto que me aconteceu", conta, indignado com o "azar" da situação. As agravantes foram trazer o filho no carro e, segundo o juiz, ter posto em risco a sua integridade física. E a reincidência do crime. Por sorte, o período de dois anos de liberdade condicional já tinha terminado, senão teria sido obrigado a voltar para a cadeia para cumprir a totalidade da sua condenação.
Na altura que foi apanhado, nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer. A mulher, já sofrida com a separação forçada ao longo de mais de oito anos de prisão, limitou-se a assimilar mais este problema e a prestar-lhe todo o apoio. "Como sempre", sublinha Cláudio, "e se não fosse ela, não sei como teria sido..." O filho, que ainda hoje fala do "tempo em que não conhecia o pai" -, pois quando nasceu este estava ainda detido - , percebeu que ele fez algo de errado e que está a pagar por isso. Tal como já entendeu que o longo tempo que este passou longe de casa, praticamente os seus primeiros anos de vida, é um "segredo de família" que é preciso guardar muito bem.
Sem emprego fixo, Cláudio sobrevive de uns biscates que vai fazendo na construção civil durante a semana, principalmente como pintor. E atribui à limitação temporal que a pena lhe impõe o facto de não conseguir arranjar mais trabalho. Por isso, não poupa críticas a este regime, que considera não servir para nada. Mas também condena a falta de apoios concedidos a quem sai da prisão e regressa ao mundo lá fora.
O transporte de ida e volta para a prisão, todos os fins-de-semana, é outra despesa que pesa no orçamento, queixa-se. Por isso, já entregou um requerimento para ser transferido para o Montijo e ficar mais perto de casa.
Enquanto o guarda regista a sua entrada, Cláudio é revistado e sopra no balão. Os limites excedidos são sempre reportados ao tribunal e podem levar o juiz a reavaliar a pena. Mas não são uma excepção. O balão onde Cláudio soprou acusa zero, como todas as outras vezes, excepto aquela, a primeira, em que resolveu beber um mini logo ao pequeno almoço. Mas um dos colegas que também entrou esta manhã já traz álcool no sangue.
A manhã de sábado é sempre complicada, pois ao registo dos homens em prisão por dias de livre que entram, junta-se o das visitas dos reclusos que cumprem pena efectiva neste estabelecimento prisional. Depois de revistados por um guarda num edifício junto à cancela, e de cara feia por terem sido obrigados a apertar o cinto das calças ou os botões da camisa, os visitantes aproximam-se da porta verde e ditam o número que identifica o familiar ou amigo que vêm visitar.
A presença de crianças que ainda andam pela mão, e a sua descontracção perante esta rotina semanal, impressionam. Mas são prontamente desmistificadas pelo guarda que aponta o número de visitas e dá acesso ao interior da cadeia: "muitas já cá vinham quando estavam na barriga da mãe. Além disso, muita porcaria que aqui entra é através delas". Como droga ou telemóveis.
Quando o frenesim alivia, um dos guardas acompanha os quatro reclusos do regime de prisão por dias livres, que entraram esta manhã, ao pavilhão onde já estão os que chegaram na sexta-feira à noite, pois têm períodos de 48 horas para cumprir. O edifício fica no exterior dos muros da cadeia, junto ao pavilhão do regime aberto virado para o interior (RAVI), onde estão os presos prestes a sair em liberdade. É um edifício térreo de tijolo, cercado por uma rede, e separado do pavilhão do RAVI por outra rede, que cobre também os dois telhados. O objectivo, explica um dos guardas que nos acompanha, é evitar que os presos do lado de cá, que escapam à vigilância das torres, arremessem coisas para dentro da prisão. Como, por exemplo, droga.
Lá dentro o ambiente é calmo e pouco se faz. Enquanto uns aproveitam para pôr o sono em dia, outros vêem televisão, lêem revistas ou jornais, ou jogam às cartas sobre uma mesa de madeira coberta por uma toalha de plástico florida. O subchefe Borges conversa com outro guarda, enquanto dá indicações a um idoso que acabou de chegar e está completamente desorientado. "Olhe, se precisar de alguma coisa, peça ajuda aqui aos colegas ou aos senhores guardas, ouviu?", esclarece-o, num tom quase paternal, enquanto um recluso mais hospitaleiro já lhe traz uma caneca e um cobertor. O cabelo branco de quem, seguramente, já passou dos 60, as calças de sarja e o pullover azul turquesa distinguem-no dos restantes homens, mais à vontade nos seus calções ou calças de fato de treino. Sobre o crime que aqui o trouxe para cumprir os 72 períodos de pena ditados pelo juiz, pouco se alonga. Percebemos apenas que está relacionado com a mulher, e com actos violentos motivados pelo álcool. E que na segunda-feira, quando sair, voltará para o seu local de trabalho, num organismo do Estado.
Cláudio partilha a playstation com Nélson, o seu companheiro de quarto. No espaço que não tem mais do que três camas, um armário, e duas mesas de cabeceira, passam o tempo entretendo-se com um jogo. Aos 27 anos, Nélson encontra-se neste regime por ter cometido o mesmo crime de Cláudio: condução sem habilitação. Na primeira vez, pagou uma multa de 250 euros, na segunda, ficou com a pena suspensa por dois anos. Agora, o juiz não lhe deu mais oportunidades e condenou-o a uma pena de 36 períodos de 36 horas.
"Tinha carro, até com seguro e inspecção, e conduzia normalmente. Chumbei duas vezes quando estava a tirar a carta. Quando percebi que não conseguia, acabei por continuar a conduzir", confessa o jovem, sublinhando que a mãe e a irmã sempre o avisaram de que, um dia, a transgressão iria acabar mal. Agora, depois de ter vendido o carro, Nélson vem e vai do Linhó até ao Sobral de Monte Agraço, onde vive, de boleia com a irmã. E está a tentar tirar a carta outra vez. Aliás, amanhã é dia de exame de código.
Nélson também tem uma filha pequena, com sete anos, que vive com a mãe. E lamenta que este regime lhe roube espaço para estar com a família, ao mesmo tempo que o obriga a perder dinheiro, porque, diz, tem sempre de recusar trabalho ao fim-de-semana. "Isto não é solução. Estamos nós a gastar dinheiro ao Estado, quando era muito mais fácil pagarmos uma multa. Se fosse alta, claro que nos servia de emenda", afirma, convicto de que estar ali é uma verdadeira perda de tempo. No sexto ano de escolaridade, Nélson deixou de estudar e desde então já teve vários trabalhos. Foi já a cumprir pena no Linhó que arranjou emprego numa fábrica de montagem de estruturas, onde informou que nunca poderia trabalhar aos sábados e domingos.
Na sala para a qual dão os mais de dez quartos dispostos em U, as confusões são raras e não passam de pequenos nervosismos, expectáveis num grupo de 20 homens obrigados a partilhar um mesmo espaço fechado. Cláudio é apontado pelos colegas como o "líder" deste grupo heterogéneo, talvez por já conhecer os cantos à casa, e certamente também por já ter estado do lado de lá. "Eles sabem que já estive ali. E até costumo dizer que eles se queixam mas não sabem o que é estar do lado de lá", diz, apontando o muro branco por trás da rede, e recusando protagonismos.
"Eu sei que não tenho moral para falar, porque também estou aqui. Mas não percebo como é que alguns continuam a arriscar e a andar de carro. Não têm mesmo noção do que é estar ali...", desabafa. O comentário traz-lhe à memória os maus momentos passados atrás das grades, pois como frisa, "oito anos não são oito dias". Mas também a noite fria de 2 de Junho de 2007, em que deixou para trás a prisão do Linhó e recuperou a liberdade.
António, nome fictício, está sentado a ler uma revista, enquanto os colegas fixam a atenção nos programas televisivos de entretenimento matinal. Nunca se imaginou numa prisão a cumprir pena, diz, nem sequer em regime de dias livres, como acontece há mais de quatro meses. Contudo, à terceira vez que foi apanhado a conduzir alcoolizado, e depois de já ter pago multas e ficado com a pena suspensa, o juiz decidiu privá-lo da liberdade por umas horas e durante 35 fins-de-semana.
Foi a seguir a um jantar com os amigos, onde bebeu uns whiskies a mais, que teve de pegar no carro para viajar até casa do pai que se estava a sentir mal, conta. Uma versão dos acontecimentos que não comoveu o tribunal mas que já lhe serviu de emenda, garante. Ao ponto de afirmar que agora a regra "se conduzir não beba" é mesmo para aplicar.
"Sei que o objectivo é a prevenção. Mas eu nunca fiz mal nenhum à sociedade. E custa-me ver isto como um crime e encarar que estou preso", considera, apontando o dedo a outros criminosos, mais mediáticos e até apanhados em flagrante, que continuam a passar impunes. Durante uns tempos, este informático bem empregado, que recusa revelar a identidade para não prejudicar a sua vida pessoal e profissional, terá de deixar de passar os fins-de-semana fora com a mulher, como fazia regularmente. E de conviver com os amigos e a família, que estão convencidos de que vai a Espanha todas as semanas tirar um curso. Mas foi na sua vida laboral que os estragos foram maiores. "Trabalho por turnos e deixei de o poder fazer. Para isso, tive de contar às duas pessoas que trabalham comigo mais directamente", explica este homem de 49 anos.
António foi o primeiro a ocupar este espaço, em Junho, quando o estabelecimento prisional começou a receber reclusos em prisão por dias livres. Ainda não havia televisão, nem telefone e passou o fim-de-semana todo a ler e a dormir. "Só pensava o que é que estava aqui a fazer... Agora, fui-me adaptando às pessoas que foram chegando", num total de 20. Às suas reivindicações foram-se juntando as dos colegas: um microondas para aquecer a comida, um telefone para poder ligar para fora, um frigorífico para ter água fresca. Entre outras.
Foi o mesmo problema com o álcool que trouxe Fernando ao Linhó. Quando soprou no balão, apanhado numa operação stop nocturna, acusou uma taxa de alcoolemia de 3.45. Um valor mais do que suficiente para a sua condução ser considerada criminosa, embora se sentisse perfeitamente consciente. Pior: como era véspera de fim-de-semana prolongado e não queria passá-lo na esquadra, explica, fugiu à policia, que ainda tentou seguir no seu encalço. Na segunda-feira, apresentou-se na esquadra para ser levado ao juiz. Mas do crime de desobediência já não se livrou.
Apesar da condenação a 48 períodos, nem tudo é mau para este motorista de pesados que garante nunca ter trabalhado embriagado. "Isto até veio a calhar. Estava a tornar-me alcoólico. Agora, pelo menos ao fim-de-semana, sei que não posso beber e estou a aprender a beber com mais moderação", afirma, acrescentando que o problema de epilepsia, recentemente detectado, também tende a agravar-se com a bebida. Mas no seu olhar triste adivinham-se outros sentimentos, que acabam por se revelar à medida que a conversa se solta. "Sabe, devo ser o único que gosto de aqui estar... Porque estou acompanhado. E lá fora, sei que estou sozinho", reconhece Laranjeiro, como é tratado pelos colegas. Não tem filhos, ficou sem companheira há pouco tempo e vive da ajuda dos pais.
O tempo passa-o a jogar às cartas ou a folhear livros de banda desenhada que traz da Biblioteca de Oeiras. Mas quando sair, vai voltar a procurar emprego como motorista, uma vez que não ficou sem carta mas perdeu o trabalho que tinha. E, quem sabe, até montar um negócio seu, diz com um brilho no olhos. Laranjeiro já pensou em montar um café, mas admite que assim a dependência do álcool talvez fosse difícil de gerir. "Já pensei em animais também. Gosto muito de cães e podia arranjar um negócio de cabeleireiro para cães", diz, com ar sonhador. A adivinhar pela amostra do seu bairro, talvez tivesse sucesso, acrescenta. "Tenho vizinhos que não cuidam deles para ir cortar o cabelo aos cães!"
dn.sapo.pt

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"...Quando um voluntário é essencialmente um visitador prisional, saiba ele que o seu papel, por muito pouco que a um olhar desprevenido possa parecer, é susceptível de produzir um efeito apaziguador de grande alcance..."

"... When one is essentially a volunteer prison visitor, he knows that his role, however little that may seem a look unprepared, is likely to produce a far-reaching effect pacificatory ..."

Dr. José de Sousa Mendes
Presidente da FIAR